O eixo da turbulência: Uma leitura geopolítica do presidente - Vitória Imperial

O eixo da turbulência: Uma leitura geopolítica do presidente

 O EIXO DA TURBULÊNCIA: UMA LEITURA GEOPOLÍTICA DO PRESENTE



No tabuleiro instável das relações internacionais contemporâneas, não há mais espaço para ingenuidades diplomáticas ou ilusões sobre a ordem liberal construída após 1945. O que se desenha diante de nós é um novo eixo de turbulência, uma geografia de atrito econômico, simbólico e estratégico que transborda os limites das fronteiras tradicionais e reconfigura os instrumentos clássicos de poder. A lógica da força não desapareceu. Apenas se metamorfoseou.

As sanções econômicas, outrora concebidas como mecanismo de dissuasão sob a legitimidade das Nações Unidas, assumiram um papel performático no xadrez das potências. A União Europeia e os Estados Unidos intensificaram medidas contra a Rússia que, embora severas em forma, revelam-se ambíguas em resultado. O cerco financeiro que visa as capacidades bélicas do Kremlin inclui restrições a bancos, petróleo, tecnologia e exportações estratégicas, mas não impediu o crescimento real do PIB russo ou o redirecionamento de fluxos comerciais para a Ásia. É uma guerra de nervos mais do que uma guerra de números. A economia russa, apoiada por redes de evasão, parceiros não ocidentais e uma máquina de propaganda interna, aprendeu a sobreviver sob cerco. Nesse contexto, a eficácia das sanções se dilui no realismo do sistema internacional, onde a legitimidade jurídica já não garante adesão prática.

Enquanto isso, os Estados Unidos reassumem, com uma franqueza desconcertante, a doutrina da coerção econômica direta. A nova ofensiva tarifária do governo norte-americano não apenas impõe barreiras comerciais generalizadas como também estabelece um novo tipo de relacionamento bilateral com seus aliados. A recente negociação com a União Europeia, por exemplo, resultou na aplicação de tarifas fixas em troca de garantias energéticas e promessas de investimentos. Trata-se de uma diplomacia punitiva disfarçada de pragmatismo, que substitui a mutualidade pelo desequilíbrio consentido.

As guerras tarifárias estendem-se ainda à América do Norte, onde Canadá e México enfrentam medidas protecionistas que remontam à lógica do isolacionismo seletivo. A retórica da soberania comercial, usada como escudo para interesses eleitorais, fragmenta antigos pactos e expõe as vulnerabilidades das cadeias globais. Nesse cenário, acordos multilaterais são esvaziados de conteúdo e a Organização Mundial do Comércio perde relevância perante a ascensão de uma geoeconomia de exceção.

O pano de fundo dessa escalada é uma crescente polarização entre blocos de poder. De um lado, o Ocidente busca preservar sua influência por meio da superioridade financeira e da força normativa. De outro, forma-se uma constelação de resistências, onde Rússia, China, Irã e Coreia do Norte constroem um eixo de interesses alternativos que desafia a centralidade atlântica. Essa tensão não é apenas comercial ou militar. É, sobretudo, simbólica. Cada tarifa imposta, cada banco bloqueado, cada plataforma banida carrega em si uma mensagem de identidade, de pertencimento, de exclusão.

Neste novo arranjo, o Brasil e outras potências médias enfrentam o dilema da ambivalência. Pressionados por compromissos históricos com o Ocidente e por oportunidades estratégicas no Sul Global, os países latino-americanos precisam navegar com lucidez entre os extremos. Não se trata apenas de escolher lados. Trata-se de preservar autonomia em um sistema que premia a submissão e penaliza a neutralidade. A verdadeira soberania, nesse contexto, exige mais do que discursos. Exige inteligência institucional, capacidade diplomática e uma leitura precisa das linhas de força do século XXI.

O tempo presente, com sua voracidade, pede uma renovação dos instrumentos de interpretação. Já não basta falar em guerra fria ou multipolaridade. Estamos diante de uma guerra de códigos, de algoritmos, de tarifas e narrativas. A ordem internacional não rui com explosões. Ela se desfaz com acordos assimétricos, com sanções seletivas, com discursos que naturalizam o desequilíbrio.

Cabe aos observadores atentos, portanto, abandonar os mapas estáticos e desenhar novos esquemas de compreensão. A geopolítica já não habita apenas os gabinetes de chanceleres. Ela pulsa nos índices de inflação, nas tabelas de comércio, nas rotas de navios desviadas, nos tratados que nunca chegam à assinatura. É um mundo em disputa silenciosa, mas profunda, onde a estabilidade não se conquista com força, e sim com lucidez.


Carlos Egert é pesquisador em Relações Internacionais, escritor e ensaísta político.

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