A MONARQUIA DEVORADA: ANTROPOFAGIA, IDENTIDADE NACIONAL E A DIGESTÃO DO IMPÉRIO
A MONARQUIA DEVORADA: ANTROPOFAGIA, IDENTIDADE NACIONAL E A DIGESTÃO DO IMPÉRIO
Quando Oswald de Andrade, nascido um ano após o início da república, escreveu o “Manifesto Antropófago” em 1928, ele não propôs apenas uma ruptura estética, mas uma insurreição simbólica contra o colonialismo cultural. A antropofagia, para ele, não era apenas metáfora provocadora, mas um programa de autonomia. Não bastava libertar-se das amarras externas. Era preciso devorar o invasor, assimilá-lo, metabolizá-lo em substância nativa. Em um gesto ao mesmo tempo ritual e revolucionário, Oswald propunha que o Brasil deixasse de ser reflexo para se tornar síntese. E é nesse ponto — profundo, subterrâneo, por vezes ignorado — que sua proposta toca o coração do projeto monárquico brasileiro.
A Monarquia do Brasil, estruturada a partir de 1822, foi, paradoxalmente, o primeiro grande ato de antropofagia política do continente. A independência não resultou de uma revolução destrutiva, mas de uma transmutação institucional. Dom Pedro I, ao proclamar-se imperador, não rompeu com a cultura europeia: ele a digeriu. Manteve os elementos úteis do Antigo Regime, absorveu as instituições liberais em voga, acolheu as tradições locais. E, como num grande banquete simbólico, forjou um Estado tropical sobre raízes multirraciais, sob a égide de uma coroa mestiça.
É comum ver o modernismo como um projeto em oposição ao passado imperial. Mas o Brasil imperial já era, em seu âmago, um laboratório de síntese. A presença simultânea do catolicismo oficial e dos cultos afro-brasileiros tolerados, das línguas indígenas na toponímia e da diplomacia em francês nos salões, das tradições ibéricas no campo e do liberalismo jurídico nas capitais: tudo isso formava um corpo coletivo em digestão constante. O Império, com todos os seus defeitos e limitações, era antropofágico antes da palavra ganhar glamour modernista.
Dom Pedro II, erudito e contemplativo, correspondeu-se com Darwin, Victor Hugo e Gobineau, mas não se deixou colonizar por nenhum. Financiou expedições científicas ao interior do Brasil com o mesmo fervor com que incentivava a cultura nacional. Era um imperador que lia em seis línguas, mas pensava em português. Ao seu lado, a Princesa Isabel aboliu a escravidão com a tinta do trono e o sangue do povo, mesmo ciente do custo político. André Rebouças, engenheiro negro, via no Império uma trincheira contra o racismo republicano nascente. Machado de Assis, mestiço e monarquista, moldou com ironia o espírito de uma nação que ainda digeria seus mitos. E Cacique Tibiriçá, já nos primórdios do Brasil, encarnava a primeira aliança simbólica entre o trono e a floresta, entre o poder e a terra.
O projeto republicano, em muitos aspectos, rompeu com essa digestão simbólica. Tentou, em nome da modernidade, separar os ingredientes. Higienizou a política, militarizou o poder, embranqueceu os heróis. E com isso, indigesto, o Brasil tornou-se fragmentado. Oswald, ao propor a antropofagia como método de reintegração, intuiu que o país só poderia reencontrar sua alma ao reassumir sua fome original: a fome de mundo, de mistura, de sincretismo, de contradição produtiva.
Nesse sentido, o gesto de Oswald e o gesto de Dom Pedro II não são incompatíveis. São complementares. Um reinou sobre um povo em transformação; o outro gritou para que esse povo voltasse a se transformar. Ambos são anticoloniais. Ambos recusaram a mimese. Ambos defenderam, à sua maneira, uma brasilidade que não se curva, mas se reinventa.
A verdadeira antropofagia não rejeita a Monarquia. Absorve-a. Faz dela não um ornamento do passado, mas um órgão vital da memória. E o verdadeiro monarquismo não teme a insurgência tropical da cultura. Ele a acolhe como herdeira legítima de uma civilização em estado de síntese.
Que se devore então o Império, mas não para destruí-lo, e sim para fazê-lo renascer. Que se cozinhe Dom João em tachos de história e se sirva Dom Pedro com raízes de jambu. Que a coroa não seja símbolo de nostalgia, mas fermento de futuro.
A antropofagia é um ritual. A Monarquia é um altar. Que o Brasil reencontre, entre ambos, sua fome e sua forma.
Carlos Egert
Presidente-Geral do Diretório Monárquico do Brasil
Jornalista e Colunista da Vitória Imperial
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