Desmistificando a abolição
É lamentável que, por vezes, a história da abolição da escravidão no Brasil seja simplificada e deturpada, especialmente por narrativas que buscam diminuir o protagonismo de figuras como a Princesa Isabel e do próprio movimento abolicionista brasileiro. Uma dessas falsidades propagadas é a ideia de que a Inglaterra "forçou" a abolição, relegando a atuação interna a um papel secundário. Essa visão não apenas ignora a complexidade do processo como também desrespeita a memória daqueles que dedicaram suas vidas à causa da liberdade.
A verdade é que a abolição da escravidão no Brasil foi o resultado de uma longa e árdua luta interna, liderada por diversos atores sociais, incluindo escravizados, abolicionistas, intelectuais, juristas e, sim, a própria Princesa Isabel, que desempenhou um papel crucial no momento decisivo. Embora a pressão internacional, incluindo a da Inglaterra, tenha existido e exercido influência, ela não foi o fator determinante e exclusivo.
Desde muito antes de 1888, a resistência à escravidão era uma realidade no Brasil. Revoltas de escravizados, como a Confederação dos Palmares, liderada por Zumbi dos Palmares no século XVII, demonstram a insatisfação e a busca por liberdade desde os primórdios da colonização. No século XIX, essa luta se intensificou em diversas frentes, desde movimentos abolicionistas, que envolviam intelectuais, jornalistas, advogados e políticos que dedicaram suas vidas à causa abolicionista.
Nomes como Joaquim Nabuco, autor de "O Abolicionismo" (1883), José do Patrocínio, jornalista inflamado e fundador da Confederação Abolicionista, Luís Gama, advogado negro que libertou inúmeros escravizados através de brechas legais, e André Rebouças, engenheiro e intelectual que defendia a abolição com indenização aos ex-escravizados e reforma agrária, foram figuras centrais nesse movimento. Suas palavras, artigos, discursos e ações mobilizaram a sociedade e se uniram ao governo imperial.
A fuga em massa, a formação de quilombos, a sabotagem da produção e outras formas de resistência cotidiana enfraqueceram o sistema escravista por dentro. A crescente dificuldade em manter a "ordem" e a produtividade nas fazendas contribuiu para a inviabilidade econômica da escravidão.
Mesmo dentro do sistema legal escravista, alguns juristas e magistrados encontraram formas de conceder liberdade a escravizados, utilizando brechas na lei e interpretando-a de maneira mais favorável à liberdade.
Debates acalorados sobre a questão da escravidão ocorreram no Parlamento Brasileiro ao longo do século XIX. Leis como a Lei Eusébio de Queiroz (1850), que proibia o tráfico negreiro (embora com fiscalização precária inicialmente), a Lei do Ventre Livre (1871), que declarava livres os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data, e a Lei dos Sexagenários (1885), que libertava escravizados com mais de 60 anos, foram marcos importantes, ainda que graduais e insuficientes para os abolicionistas. Essas leis foram resultado de intensa pressão interna e de concessões do governo imperial diante da crescente insustentabilidade da escravidão.
Em meio a esse cenário de crescente pressão interna, a Princesa Isabel, como Regente durante as ausências de seu pai, o Imperador D. Pedro II, assumiu um papel crucial no momento final da abolição.
Sensível à causa abolicionista e influenciada pelas ideias da época, ela sancionou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Este ato histórico, embora breve em seu texto, representou a culminação de décadas de luta e o fim de um sistema cruel e desumano.
É importante ressaltar que a Princesa Isabel não agiu isoladamente. Ela foi influenciada e apoiada pelo movimento abolicionista, por conselheiros como o Barão de Cotegipe, que ironicamente foi o último presidente do Conselho de Ministros do Império e tentou resistir à abolição imediata, ameaçando a Princesa de perder o trono, o que ela rebateu prontamente, e por uma crescente parcela da sociedade brasileira que clamava por liberdade e justiça.
É inegável que a Inglaterra exerceu pressão sobre o Brasil para abolir o tráfico negreiro e, posteriormente, a própria escravidão. Motivações econômicas, onde a Inglaterra defendia o trabalho livre e assalariado para expandir seus mercados, e humanitárias se misturavam nessa pressão. A Lei Bill Aberdeen (1845), que autorizava navios britânicos a apreenderem navios negreiros em águas brasileiras, é um exemplo dessa intervenção.
No entanto, atribuir a abolição unicamente à pressão inglesa é ignorar a dinâmica interna do Brasil. A escravidão já demonstrava sinais de esgotamento econômico e social, e a luta interna pelo fim do sistema era vigorosa e crescente. A pressão externa serviu como um catalisador em certos momentos, mas a abolição de 1888 foi, fundamentalmente, uma vitória da sociedade brasileira, fruto da coragem dos escravizados, da dedicação dos abolicionistas e da sensibilidade de figuras como a Princesa Isabel diante de um clamor nacional por liberdade.
Portanto, é crucial refutar a narrativa simplista e falaciosa de que a abolição foi imposta pela Inglaterra. A história da abolição da escravidão no Brasil é rica e complexa, marcada pela luta incansável de inúmeros brasileiros que sonhavam com um país livre e justo. A Princesa Isabel, ao sancionar a Lei Áurea, inscreveu seu nome na história como a "Redentora", mas sua ação foi o coroamento de um longo processo de resistência e mobilização interna que jamais deve ser esquecido ou minimizado.
Por: Patrick Santos.
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