Katmandu: Crise Republicana e Ressurgimento da Monarquia
KATMANDU: CRISE REPUBLICANA E RESSURGIMENTO DA MONARQUIA
Katmandu, Nepal —
Entre as montanhas do Himalaia e os ecos de um trono silencioso, o Nepal revive, em 2025, um debate que parecia encerrado: o da legitimidade da monarquia.
A extinção da Casa Real, proclamada em 2008, não sepultou sua memória — apenas a adormeceu sob o peso de promessas republicanas que jamais se cumpriram. Agora, nas ruas de Katmandu, essa lembrança desperta em forma de clamor político.
No fim de março, as avenidas de Tinkune, Koteshwor e Sinamangal tornaram-se palcos de confrontos que surpreenderam o mundo. Manifestantes pró-restauração exigiram o retorno do rei Gyanendra Shah, empunhando bandeiras que misturavam fé, nostalgia e descontentamento.
O saldo foi trágico: dois mortos e mais de cem feridos. O governo impôs toque de recolher e anunciou investigações oficiais, mas o trauma permanece visível nas praças e nos semblantes.
Analistas locais classificam o episódio como o mais grave desde a queda da monarquia. “Não é apenas um protesto — é uma reedição simbólica do poder”, escreveu o Kathmandu Post.
O movimento, organizado sob a égide do Rastriya Prajatantra Party (RPP), carrega um discurso de restauração que encontra eco entre jovens desempregados, empresários desiludidos e religiosos que clamam pelo retorno do Estado Hindu.
Em 28 de maio, o RPP anunciou novas manifestações, declarando que seriam “pacíficas e dentro da Ring Road”, a grande via circular da capital.
Mas por trás do tom conciliador, há fissuras: reuniões internas têm terminado em impasses e disputas por liderança, revelando um campo restauracionista fragmentado.
Enquanto isso, os partidos tradicionais: desmoralizados por escândalos, crises econômicas e sucessivas dissoluções do parlamento… mostram-se indecisos.
Alguns líderes chegaram a desafiar o ex-rei a fundar um partido próprio e disputar as urnas “para medir seu real respaldo popular”, segundo reportou o MyRepublica.
Outros preferem o silêncio, temendo que a monarquia, antes lembrança distante, volte a ocupar espaço real na política.
No horizonte institucional, a renúncia do ex-premiê K. P. Sharma Oli e a dissolução do parlamento abriram um vácuo que levou à posse de Sushila Karki, primeira mulher a ocupar o cargo de chefe de governo interina.
Seu mandato, de transição, deverá conduzir o país até as eleições de março de 2026 — e tenta restaurar uma normalidade que parece se esvair a cada semana.
O governo interino, porém, enfrenta a mesma descrença que corroeu os anteriores: a sensação generalizada de que o Estado perdeu o rumo.
Nas sombras desse impasse, a coroa ressurge como símbolo de estabilidade.
Para muitos nepaleses, o rei Gyanendra encarna a última imagem de unidade nacional; para outros, é apenas o espectro de um passado feudal que deve permanecer encerrado.
Ainda assim, suas aparições públicas discretas, muitas vezes em templos ou cerimônias religiosas, reacendem o imaginário coletivo de um tempo em que o trono parecia mais previsível que o parlamento.
As minorias religiosas, por sua vez, veem o avanço do monarquismo hindu com preocupação. Organizações cristãs e laicas alertam para o risco de uma regressão no pluralismo que a república tentou construir.
Mas o fato é que, em um país assolado por desemprego, desigualdade e corrupção, a nostalgia se converteu em programa político.
O Nepal vive, portanto, um interregno: essa zona cinzenta entre o colapso e a refundação.
De um lado, a república tenta reafirmar sua legitimidade; de outro, a monarquia renasce como mito político, um espelho onde a sociedade busca reconhecer sua identidade perdida.
É o duelo entre o que se foi e o que ainda pode ser.
O que se vê nas ruas de Katmandu não é apenas uma disputa entre passado e futuro, mas entre duas formas de fé: a fé nas instituições republicanas e a fé no símbolo da coroa.
Em meio às montanhas eternas do Himalaia, o Nepal recorda ao mundo que o poder, por mais moderno que se queira, ainda depende do mito que o sustenta.
Por Carlos Egert
Jornalista, cientista político, jurista e colunista do Vitória Imperial.
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