Luís Gama e Luísa Mahin: O verbo livre nascido do silêncio da nação
LUÍS GAMA E LUÍSA MAHIN: O VERBO LIVRE NASCIDO DO SILÊNCIO DA NAÇÃO
Nos subterrâneos da História, onde as páginas oficiais vacilam em tocar, ressurge com a força indomável dos que jamais se renderam o nome de Luís Gonzaga Pinto da Gama. Advogado dos cativos. Poeta dos injustiçados. Verbo altivo que rasgou, com mãos de aço e alma em brasas, os véus espessos da escravidão. Ao seu lado, em silêncio ancestral que agora se desfaz, ergue-se a figura de sua mãe: Luísa Mahin, mulher negra, livre, alfabetizada. A quem o tempo tentou reduzir à sombra, mas que ressurge, nos arquivos reencontrados, com a luz das origens. Não mais símbolo difuso, mas vértice inaugural de uma linhagem libertária que germinou em seu filho e, por ele, tocou o próprio destino da nação.
As pesquisas minuciosas da historiadora Lisa Earl Castillo, em colaboração com Wlamyra Albuquerque, ambas da Universidade Federal da Bahia, lançaram nova luz sobre as raízes desse vulto nacional. Nos documentos preservados no Arquivo Público do Estado da Bahia, emergiu o que por décadas estivera velado: o batismo de Luiz da Gama, registrado em 21 de junho de 1831, em Salvador. Ali se lê: “pardo forro”. Essa designação, por si só, já carrega em sua fonética o desafio lançado às estruturas de sua época. Foi batizado aos três meses na Igreja do Sacramento da Rua do Passo, sob o olhar invocado da Mãe de Deus. Os registros, até então esquecidos entre páginas carcomidas, são agora restituição de verdade e de justiça histórica.
Mas o eco dessa revelação não se encerra aí. Pela primeira vez, o nome de seu pai surge com clareza documental. Antônio Agostinho Carlos Pinto da Gama, homem branco de família baiana, menciona expressamente o filho em seu testamento, datado de 1837. Reconhecimento tardio, é certo. Mas elo definitivo na tessitura biográfica de Luís. Ele foi gerado no entrechoque de mundos antagônicos: domínio e resistência, privilégio e dignidade insurgente.
Eis o paradoxo que marca o início de sua existência. O próprio pai o vendeu como escravo aos dez anos de idade. Reduziu-o a cifra, a bem de algum contrato vil, tentado apagar nele a centelha humana. No entanto, o que nasceu como ofensa tornou-se semente de glória. Recusando o destino imposto, Luís Gama redimiu-se pelo Direito, que estudou sozinho, à luz de lamparinas, entre livros usados e memórias feridas. Ao invocar a Lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos, e afirmar judicialmente sua condição de filho de mulher livre, arrancou da injustiça o direito de ser homem. Fez da lei, pedra fria dos poderosos, a lâmina viva dos oprimidos.
Contudo, não se bastou em sua própria alforria. Construiu para outros a ponte da liberdade. Calcula-se que mais de quinhentas pessoas foram libertas por sua atuação jurídica. Entre todos os feitos que desafiam o tempo, brilha com singular intensidade a célebre Questão Netto, de 1869. Em um único processo, libertou 217 cativos. Uma epopeia forense, insuperável na história jurídica brasileira. Era a justiça insurgente encarnada num homem negro, sem diploma acadêmico, mas dotado de razão aguda e ética inviolável. Ultrapassou, em retidão, todas as honrarias concedidas à nobreza de fachada.
Além do jurista, houve o poeta. O jornalista. O satirista. Fundou o jornal Diabo Coxo e mais tarde o Radical Paulistano, ao lado de Ruy Barbosa, com quem dividiu a pena e os ideais de regeneração. Sua escrita era flecha lançada contra os abusos, rasgando os véus da hipocrisia. Enaltecia os humildes. Denunciava os cínicos. E proclamava com altivez a dignidade inalienável da raça negra.
Hoje, a República que o relegou em vida, busca render-lhe homenagens tardias. Está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de São Paulo e foi nomeado Patrono da Abolição. Contudo, tudo isso, por mais justo, é eco. O brado primeiro foi entoado nas salas de audiência, onde ele, só, enfrentava os arautos da escravidão, munido apenas de códigos, precedentes e a força inquebrantável de sua consciência. A verdadeira obra de Gama está escrita na liberdade dos outros. E essa é a herança sagrada que nos deixa.
Quanto a sua mãe, Luísa Mahin, os registros redescobertos não apenas confirmam sua existência real, mas revelam sua condição altiva: mulher negra, forra, possivelmente de origem africana, talvez ligada à Revolta dos Malês. Seu nome atravessou os séculos na oralidade como mito. Agora, os documentos lhe devolvem o corpo. Mito e mulher. Fundadora de uma ética de combate que não empunhava armas, mas fazia da coragem um ato cotidiano. Com a confirmação de sua maternidade e de sua presença na Salvador oitocentista, Luísa deixa de ser sombra simbólica. Assume, enfim, o lugar de honra reservado às que fundaram, no silêncio, a dignidade de um povo.
Ambos, mãe e filho, são vértices de uma genealogia sagrada da resistência. Não da resistência bruta, mas da que se faz com inteligência, com moral, com símbolo. Luís Gama representa o que de mais alto a monarquia constitucional brasileira foi capaz de produzir: um homem do povo que, mesmo sem sangue azul, iluminou os salões da Justiça com a luz de sua própria consciência. Seu espírito encarna o ideal de um Império regenerado. Aquele em que a lei não serve à dominação, mas à elevação do espírito humano.
Nas figuras de Luís Gama e Luísa Mahin, há um sopro de eternidade. São pilares invisíveis da nação que ainda buscamos fundar. O Brasil justo, o Brasil profundo, o Brasil inteiro não poderá existir sem antes passar por eles. E o Império que os acolheu, mesmo que de forma desigual, viu neles a semente de uma monarquia possível. Uma monarquia que não tema o brilho dos que vêm do povo. Que não se envergonhe em ouvir os que jamais tiveram poder, mas que sempre tiveram razão.
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Carlos Egert
Editor e historiador do Vitória Imperial
Presidente-Geral do Diretório Monárquico do Brasil
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