“Quando você voltar, eu não estarei mais aqui”: a morte da Imperatriz Leopoldina

 Por: Renato Drummond Tapioca Neto

No dia 11 de dezembro de 1826, o Diário Fluminense aparecia com a sua primeira página tarjada de preto. No editorial, uma notícia que todos temiam: às 10 horas e um quarto daquela manhã faleceu Maria Leopoldina da Áustria. Depois de vários dias de preces públicas, destinadas à saúde da soberana, a doença finalmente venceu aquela que ficou conhecida como a Paladina da Independência, mãe do nascente Império do Brasil. Por parte de toda a população vigorava o pesar pela perda de uma mulher que abraçou a nova pátria como se nela tivesse nascido. Era uma mulher querida por todas as classes sociais, incluindo a dos escravos, cuja condição de cativos ela sempre se horrorizou. Da boca deles, Maria Graham, amiga e confidente de Leopoldina, registrava o lamento: “quem tomará o partido dos negros? Nossa mãe se foi”. Conforme registrou o embaixador austríaco Mareschal, “uma dor muda de desespero tomava todas as fisionomias; negros, mulatos, portugueses, ingleses, italianos, alemães todos choravam em comum a morte da imperatriz”. Ela partia para a imortalidade deixando corações arrasados e cinco crianças órfãs no Paço de São Cristóvão. Para o Brasil, a herança de uma luta que se arrastaria por toda a posteridade.

Arquiduquesa Leopoldina, por Josef Kreutzinger.

Arquiduquesa Leopoldina, por Josef Kreutzinger.

Leopoldina de Habsburgo-Lorena foi uma personagem única da história brasileira, mas ainda pouco apreciada nos tempos atuais. Muito já se escreveu sobre sua contribuição para o processo de emancipação política do país e o pranto geral que seguiu após a sua morte é apenas uma entre as muitas provas de como ela era amada pela população. Convidamos assim o leitor a relembrar conosco aqueles tristes dias do início de dezembro de 1826, marcados por muito desespero e euforia. A apreensão já era sentida pela população da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro quando o Diário Fluminense, no dia 29 de novembro, anunciava o comunicado subscrito por João Valentim de Faria Souza Lobato, porteiro da Imperial Câmara: “Em consequência de continuar o incômodo de Sua Majestade a Imperatriz, não há beija-mão nos dias 1 e 2 do próximo mês de dezembro”. A este aviso, seguiram-se outros no mesmo periódico, informando à população que na sexta-feira, dia 1, quarto aniversário da Coroação e Sagração de D. Pedro I, permaneciam embandeiradas as fortalezas e embarcações de guerra, dando as costumeiras salvas de artilharia, embora sem o costumeiro cortejo que costumava ter lugar em tais ocasiões.

A causa da suspensão das festividades, por sua vez, devia-se à ausência de D. Pedro, que estava no sul do país, e também “pela continuação da enfermidade de Sua Majestade a Imperatriz”. No dia seguinte, outra celebração seria sufocada: o aniversário de um ano do herdeiro do trono. Logo, a triste verdade se espalhou pelos quatro cantos da cidade com a publicação do “Boletim de três de Dezembro, pelo meio dia”, assinado pelo médico da Imperial Câmara, Dr. Vicente Navarro de Andrade, barão  de Inhomerin:

S.M. a Imperatriz passou a tarde de ontem com pouco cômodo; a febre conservou-se do mesmo modo que dantes, as evacuações biliosas, abundantes e numerosas, a tosse gutural teimosa, o sono pouco e não suficiente; pelas oito horas da noite houve um ligeiro espasmo de garganta com algum suor durante o mesmo espasmo.

À noite, com os devidos medicamentos ministrados, o quadro da paciente apresentou uma leve melhora. Contudo, “em ocasião de acessos que teve de noite, notou-se alguma incoerência no que dizia, por cujo motivo se lhe puseram sinapismos”. Mas o que teria provocado esse estado de saúde tão sério? Até hoje, esse assunto faz parte do campo das especulações.

D. Pedro I por Benedito Calixto.

D. Pedro I por Benedito Calixto.

Já se falou muito sobre as causas da morte da primeira imperatriz do Brasil. Autores como a historiadora Mary Del Priore e Carlos H. Oberacker Jr. afirmam que o quadro médico de D. Leopoldina foi agravado devido a uma série de eventos ocorridos no mês de novembro de 1826, envolvendo D. Pedro I e sua amante, Domitila de Castro. Devido à complicações com a Guerra da Cisplatina, o imperador decidiu partir para o sul, no intuito de assumir o comando das tropas brasileiras. Antes da partida do soberano, seria organizado um beija-mão no Paço em sua despedida, no dia 20. De acordo com alguns informes de diplomatas e relatos de viajantes, D. Pedro I teria decidido na ocasião colocar a esposa e a amante juntas durante a cerimônia. A imperatriz, debilitada por dores físicas agravadas pela sua gravidez, recusou-se a comparecer ao evento, principalmente ao lado de Domitila. Pedro, enraivecido com a teimosia da esposa, tentou arrasta-la para a sala de maneira violenta, causando nela hematomas que foram percebidos pelo embaixador francês, o marquês de Gabriac. Outros boatos dão conta de que o Imperador empurrou Leopoldina de uma escada do Palácio de São Cristóvão. Uma queda dessas, certamente, teria provocado na vítima sérias fraturas nos ossos.

Contudo, quando os remanescentes humanos da imperatriz (hoje sepultados no Monumento ao Centenário da Independência, localizado no bairro do Ipiranga em São Paulo-SP) foram estudados pela arqueóloga e historiadora Valdirene do Carmo Ambiel em fevereiro de 2012, constatou-se que D. Leopoldina não possuía qualquer osso quebrado, suspeita de reumatismo ou mesmo marca de trauma. Em 2 de novembro de 1826, a imperatriz perdeu o filho que esperava. Muitos ainda acreditam que o aborto teria sido provocado por um chute de D. Pedro deu em sua esposa. Mais uma vez, os estudos com os despojos da monarca descartam essa possiblidade. Além do mais, como esclarece Paulo Rezzutti,

O feto abortado pela imperatriz tinha entre dois meses e meio e três, segundo os boletins médicos da época. Nesse período da gestação, o feto dentro do útero está bem protegido pelo anel ósseo formado pela sínfise púbica, pelo ilíaco e pelo sacro. Um simples pontapé, por mais forte que D. Pedro fosse, não destruiria esses ossos e nem atingiria o útero, provocando o abortamento. Mesmo que fosse o caso, o óbito e a expulsão do feto teriam ocorrido em questão de horas e não de dias. D. Pedro teria batido na esposa em 20 de novembro; ele embarcou no dia 23, o navio partiu no dia 24, e o aborto ocorreu somente em 2 de dezembro (REZZUTTI, 2013, p. 128).

D. Pedro I e D. Leopoldina em trajes de Gala, por Simplício Rodrigues de Sá.

D. Pedro I e D. Leopoldina em trajes de Gala, por Simplício Rodrigues de Sá.

No último encontro do casal, ocorrido no dia 23, Leopoldina avisou para Pedro que “eu estou morrendo […] quando você voltar do Rio Grande, eu não estarei mais aqui. Os que são separados na vida serão unidos depois da morte”. Eles se abraçaram aos prantos e ela lhe perdoou por todas as ofensas cometidas. É estranho como 188 anos após a morte da imperatriz, suas palavras soam quase proféticas. O imperador partia para o sul, deixando mais uma vez a mulher como regente. No dia 29, com muito esforço, Leopoldina conseguiu se levantar do leito e presidir o conselho de ministros. Depois disso, sua situação piorou visivelmente. Todos os compromissos oficiais, conforme mencionado anteriormente, foram cancelados. Mareschal, na sua carta ao conde Neipperg (segundo marido de Maria Luisa, irmã de D. Leopoldina), afirmava que a doença da soberana foi caracterizada como febre biliosa. Escreveu o embaixador que “no dia 4 de manhã, s.m. confessou-se e recebeu o Santo Sacramento com a tranquilidade de espírito e a piedade que distinguem tão eminentemente sua família”. Da noite do dia 4 para 5 de dezembro, a imperatriz sofreu “treze evacuações biliosas com mau cheiro”.

A “febre” que acometeu D. Leopoldina levou-a ao delírio em muitas ocasiões. Ela começou a suspeitar de que estava sendo envenenada pelos médicos, amaldiçoando também o marido e a amante deste. De acordo com o relado de Mareschal do dia 9, depois de se recuperar dos nervos, na manhã do dia 8 ela mandou chamar os filhos para se despedir deles. Depois de ter recebido os últimos Sacramentos, “ela chamou todos os criados de sua casa em redor de si, e enquanto eles choravam, perguntou a cada um se o tinha ofendido”. A soberana se despedia da vida com um verdadeiro exemplo de piedade cristã, tão comum às outras mulheres de sua família. Enquanto isso, nas igrejas, as preces não cessavam. A cada novo Boletim médico dando notícias graves, maior se tornava o número de fieis a pedir pela saúde da monarca. Os sentimentos da população são confirmados por muitas testemunhas, entre elas o representante da Prússia, Theremin: “a consternação do povo era indescritível; nunca desde a morte de Luís XV, rei da França, sentimento mais unânime foi visto”. Os súditos, afirmava o diplomata, “se encontravam literalmente de joelhos implorando ao Todo-poderoso pela conservação da imperatriz”.

Túmulo de D. Leopoldina.

Túmulo de D. Leopoldina.

Em 10 de dezembro, D. Leopoldina se confessou com o Bispo D. José Caetano e recebeu a extrema unção. No dia 11, os médicos publicavam o 17º e último boletim com a triste notícia: “pela maior das desgraças se faz público que a enfermidade de S.M. a imperatriz resistiu a todas as diligências médicas, empregadas com todo o cuidado por todos os médicos da Imperial Câmara”. Mareschal assim descreveu os últimos momentos de vida da monarca: “S.M. continuava a estar num estado convulsivo, o desânimo aumentando a cada momento e não lhe permitindo mais do que tons fracos de gemidos; a respiração extremamente curta, o pulso muito fraco depois de 24 horas”. Então, às 10 horas da manhã a morte pôs termo aos seus sofrimentos, “sem esforço, sem estertor, suas feições de modo algum eram alteradas e ela parecia ter adormecido pacificamente e na posição mais natural”.  A comoção foi geral! O marquês de Paranaguá escreveu à D. Pedro I que “perdeu v.m.i. a mais digna e virtuosa de todas as esposas, e nós a melhor de todas as soberanas”. Em seguida à morte de Leopoldina, organizou-se para ela a última cerimônia do beija-mão. As formalidades para o sepultamento da primeira imperatriz do Brasil precisavam ser seguidas.

Com efeito, explica Mary Del Priore que “para isso, foi preciso retirar seu corpo da solução de álcool e cal na qual a tinham mantido por dois dias. Injetaram-lhe líquidos corrosivos ‘por ser vedado pela lei portuguesa embalsamar mulheres”. Em seguida, “enfaixaram-na com linho e derramaram sobre ela essências e aromas a fim de evitar as consequências da alta temperatura do verão” (DEL PRIORE, 2012, p. 188). Na manhã do dia 13 teve lugar a cerimônia. O corpo da soberana estava vestido com os mesmo trajes usados por ela por ocasião da Coroação de D. Pedro I, conforme ficou comprovado pela necropsia feita no seu cadáver em 2012. A primeira a beijar a mão enluvada de Leopoldina foi sua primogênita, Maria da Glória, seguida pelos outros irmãos. Depois foi a vez dos altos funcionários e demais cortesãos. Nos portões do Palácio, imensa multidão de todos os bairros, com imagens ou círios monumentais, permanecia estacionada rezando pela alma do “anjo do nascente império”. Às oito horas da noite, tinha-se início o cortejo fúnebre rumo ao Convento da Ajuda, primeiro lugar de repouso da soberana.

Monumento e comboio fúnebre da Imperatriz leopoldina, por Debret e Thierry Freres.

Monumento e comboio fúnebre da Imperatriz leopoldina, por Debret e Thierry Freres.

De acordo com alguns relatos, o imperador demonstrou “provas inequívocas de uma grande dor” pela morte da esposa. Dizem que ao receber a noticia da morte dela “tremeu e cheio de desespero puxava seus cabelos”. Após o sepultamento, ele retirou-se para o palácio, isolando-se por oito dias. Teria sido nessa ocasião que ele escreveu os seguintes versos e que ficam aqui como testemunho da dignidade do caráter de D. Leopoldina perante seu marido:

Deus eterno porque me arrebataste,
A minha muito amada Imperatriz!
Tua divina bondade assim o quis.
Sabe que o meu coração dilaceraste!

Tu de certo contra mim te iraste,
Eu não sei o motivo, nem que fiz,
E por isso direi como o que diz:
Tu m’a deste, Senhor, tu m’a tiraste.

Ela me amava com o maior amor,
Eu nela admirava a sua honestidade,
Sinto meu coração por fim quebrar de dor.

O mundo nunca mais verá em outra idade
Um modelo tão perfeito e tão melhor
De honra, candura, bonomia e caridade.

Valdirene do Carmo Ambiel a lado dos remanescentes humanos de D. Leopoldia (foto do Dr. Luiz Roberto Fontes).

Valdirene do Carmo Ambiel a lado dos remanescentes humanos de D. Leopoldina (foto do Dr. Luiz Roberto Fontes).

Como disse o biógrafo da soberana, Carlos H. Oberacker Jr., “D. Pedro era um homem sentimental, e não duvidamos da comoção que o atingiu diante da morte de uma pessoa que apesar de tudo estimava e que fazia parte tão íntima de sua vida” (1973, p. 448). Hoje se completam 188 anos que a Imperatriz partiu para a imortalidade. Como ela mesmo profetizou, “os que são separados em vida serão unidos na morte”. Seu corpo jaz lado a lado com o de seu marido na Cripta Imperial. “Seu espírito, cremos, habita o céu. Sua memória, não gastarão os séculos”.

Referências Bibliográficas:

AMBIEL, Valdirene Do Carmo. Estudos de Arqueologia Forense Aplicados aos Remanescentes Humanos dos Primeiros Imperadores do Brasil Depositados no Monumento à Independência. 2013. 235 f. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – MAE, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2013.

DEL PRIORE, Mary. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos. – Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

FRANÇA, Mario Ferreira. A doença que vitimou Dona Leopoldina. In: D. Pedro I e Dona Leopoldina perante a história: vultos e fatos da Independência. – São Paulo: Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1972, p. 279-314.

KANN, Bettina; LIMA, Patrícia Souza. D. Leopoldina: cartas de uma imperatriz. – São Paulo: Estação Liberdade, 2006.

PRANTNER, Johanna. Vida e morte de D. Leopoldina na Áustria e no Brasil. In: 200 anos Imperatriz Leopoldina. – Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1997, p. 155-171.

OBERACKER Jr., Carlos H. A imperatriz Leopoldina, sua vida e época: ensaio de uma biografia. – Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.

REZZUTTI, Paulo. Domitila: a verdadeira história da Marquesa de Santos. – São Paulo: Geração Editorial, 2013.


Fonte: Rainhas RT trágicas

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