Resenha do livro: O Novo Grito do Ipiranga.

“Pela memória, o homem devassa o tempo. A recordação torna-nos mais profundos. Os homens profundos são sempre os que recordam. Há sempre superficialidade naqueles que vivem apenas a hora presente.”
Nas palavras de Mário Ferreira dos Santos, somos convidados a fugir da superficialidade, a nos tornar profundos através do cultivo da memória – pelo menos de sua preservação e do que podemos aprender com ela. Este ato de devassar, de perscrutar o tempo, talvez seja a síntese do trabalho do historiador. Foi exatamente isso o que fez a competente arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel em O Novo Grito do Ipiranga, lançado pela primorosa Linotipo Digital no mês passado. Neste livro, a arqueóloga nos apresenta os resultados de suas pesquisas de campo na Cripta Imperial do Ipiranga, onde estão resguardados os remanescentes mortais de D. Pedro I (D.Pedro IV para os Portugueses), de D. Leopoldina e da belíssima, mas pouco conhecida, D. Amélia. Aliás, o estado de conservação desta última – como é constatado no livro –  é absolutamente impressionante.  Tive o privilégio de participar do evento de lançamento do livro no magnífico Parque da Independência e, na cripta, agradecer à Dra. Ambiel pelo significativo trabalho; além, é claro, de visitar o local de resguardo das ilustres personalidades.
O livro, de 271 páginas, é composto de duas partes: a primeira, intitulada “Objetivos e Justificativas”, nos apresenta, de forma sumariada porém fidedigna, a vida das três personalidades. Com efeito, as informações biográficas de D. Amélia – a menos conhecida das imperatrizes – têm como referência Cláudia Thomé Witte em “A Imperatriz Esquecida”, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Valdirene salienta que há muita confusão sobre D. Amélia. Em certa altura ela relata que, nos sete meses em que sua equipe trabalhou no Monumento à Independência, não eram raras as vezes que ouviam dos visitantes (inclusive de professores de História, lamentavelmente), que ela seria amante de D. Pedro I.
Esta primeira parte é concluída com relatos acerca da construção do Monumento e da São Paulo do início do século XIX.
A segunda parte, intitulada “Pesquisa”, é, de fato, a apresentação dos resultados das exumações. A arqueóloga inicia afirmando que, em todo este trabalho, um dos aspectos mais importantes dizia respeito às permissões. E, por uma questão de dignidade e respeito, foram concedidas as permissões por SS.AA.II.RR D. Luiz e D. Bertrand de Orleãns e Bragança.
Valdirene afirma: “Nosso trabalho analisou um corpo de cada vez: o primeiro foi o de D. Leopoldina, em seguida o de D. Pedro I e, por último, o de D. Amélia, ao longo de sete meses de pesquisas na Cripta ou Capela Imperial do Ipiranga”.  Somente aqueles que com verdadeiro entusiasmo e amor encontram no que fazem uma missão entenderão o que levou a equipe da arqueóloga a passar noites em claro num esforço louvável durante os processos – únicos na ciência brasileira – de acomodação e transporte dos restos mortais dos imperadores.
Finalmente, temos as provas que inocentam o Imperador da acusação de haver desferido um golpe no abdôme de D. Leopoldina – grávida – acarretando em sua morte prematura. Impressionante foi constatar o estado de preservação do vestido e de outros acessórios da Imperatriz.
Através de métodos específicos concluiu-se, por exemplo, que a estatura de D. Pedro I seria de 1,66 m a 1,77 m. As medalhas das comendas com que foi sepultado revelam profunda admiração e respeito, sobretudo do povo português, pois, como sabemos, D. Pedro I – intitulado D. Pedro IV pelos lusitanos – empreendeu uma guerra contra seu irmão absolutista D. Miguel, em nome de sua filha D. Maria II de Portugal. A Comenda da Barra das Três Ordens, encontrada nos remanescentes mortais, revela o afeto da filha pelo pai. Ela o condecorou dias antes de sua morte.
Creio que o momentum mirabilis dos relatos de todo o trabalho das exumações tenha sido a constatação do estado de preservação do corpo de D. Amélia. Talvez nunca se tenha visto algo tão impressionante no universo da arqueologia – na arqueologia nacional não há.   Nos relatos, D. Amélia é representada com uma beleza singular. Está registrado que D. Pedro I, na emoção de conhecê-la, sofreu um ataque epilético. O motivo por que D. Amélia de Leuchtenberg é tão pouco conhecida dos brasileiros é o curto período que ela permaneceu no país: menos de dois anos. O empenho e a dedicação em preservar a memória de um povo é uma ação salutar, e Valdirene e sua equipe têm esse mérito.
No evento de lançamento, o editor Laerte Zanetti destacou a fotografia de D.Pedro I – provavelmente a única existente no mundo – contida no livro. Ele comprou os direitos autorais da fotografia em Portugal. É importante registrar esse fato, pois nos diz o quão significativo é o trabalho da Editora Linotipo Digital.
A leitura é muito fluida e agradável. Há um equilíbrio perfeito entre as duas partes do livro. A primeira, sumariando os dados biográficos e contextualizando os conceitos históricos – quase como uma introdução –, e a segunda, explanando em detalhes o longo processo da pesquisa de campo. A despeito de pequenos e insignificantes erros de edição, é uma obra deveras importante, que, nestes dias confusos, veio somar esforços de guerra. Munição e suprimentos para a Guerra Cultural!
Recomendo com veemência a leitura deste livro, sobretudo para aqueles que procuram bons exemplares de História, e, como o citado Mário Ferreira dos Santos, querem buscar o que há além da hora presente.

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